Escrito por: Kaique Leite e Carlos Gabriel Dias
Revisado por: Lucas Galdioli
O reconhecimento da ameaça psicológica em gatos domésticos (Felis silvestris catus) é o alvo da psiquiatria felina. A utilização da etologia na clínica médica está relacionada na avaliação do impacto das condições emocionais. As etiopatogenias dos quadros comportamentais fora de contexto são chamadas de transtornos e não de doenças. As manifestações de desordens em animais se encontram em geral associadas ao manejo inadequado e ambientes inapropriados, visto a grande falta de conhecimento do comportamento da espécie.
O transtorno de ansiedade é uma das alterações psiquiátricas mais recorrentes em situações de vulnerabilidade, como confinamento e superpopulação. Sua dinâmica é multifatorial, e sua evolução está relacionada ao tédio, não poder expressar seus comportamentos naturais, disputa por territórios e recursos, a ausência de enriquecimento ambiental. A condição de ansiedade predispõe a várias outras desordens clínicas, como infecções genito-urinárias recorrentes, alopecias psicogênicas e automutilações. A desinformação do mantenedor sobre o assunto pode agravar o quadro do animal.
No universo do acolhimento de gatos domésticos em vulnerabilidade, a preservação, diagnóstico e reabilitação emocional são fundamentais e urgentes. O transtorno mental é a terminologia que mais abrange toda complexidade de adoecimento das funções mentais e não motoras. Nos felinos, a origem pode ser genética, ambientais e experiências de vida. O maltrato representa a ação (vulnerabilidade circunstancial) que leva ao sofrimento (percepção de vulnerabilidade), suspendendo as diretrizes dos pilares da felicidade felina e o conceito de Saúde Única.
A felicidade é um estado individual do animal, e pode variar ao longo do tempo frente à sua adaptação. Está relacionada ao que o animal faz e sente durante sua rotina. Não depende apenas da gatificação do ambiente, isto é, aparelhar o habitat do animal e o mesmo não utilizar os objetos como deveria. Portanto, submeter a felicidade dos gatos apenas pensando em recursos, é uma simplificação da espécie.
Os felinos são seres que precisam promover suas necessidades básicas (Tabela 1). A liberdade psicológica ou a quinta liberdade é aplicada à quem deverá estar livre do medo, ansiedade, insegurança, frustração, dor e perda de vínculo afetivo. Em um ambiente vulnerável, como o de superpopulação, o animal não age naturalmente, como em vida livre, cujo contexto interfere diretamente no seu comportamento e qualidade de vida.
Tabela 1 – Necessidades ambientais básicas para a manutenção de uma boa qualidade de vida para gatos abrigados
Espaço físico / Prover um lugar seguro | Habilidade de se levantar, sentar, deitar e se alongar normalmente sem ser impedido pelas paredes da baia ou itens dentro dela;Capacidade de manter pelo menos 60 centímetros de distância de outros gatos que estão em contato visual ou físico;Oportunidade de se exercitar, incluindo caminhar, correr e pular. |
Mobília e acessórios da baia / Proporcionar múltiplos e separados recursos ambientais | Locais para alimentação, água, áreas de banheiros, e áreas de lazer.Locais próprios para arranhar, cama macia para descansar e ajudar na termorregulação;Oportunidade para se esconder (locais que não seja a caixa de sanitária);Poleiros elevados para observação do ambiente e retirada caso deseje; |
Interação social | Interação social positiva, regular e previsíveis com pessoas (para gatos bem socializados com seres humanos);Interação social positiva, regular e previsíveis com outros gatos sociais e com estilos comportamentais compatíveis (para gatos bem socializados com outros gatos); |
Enriquecimento cognitivo | Desafios cognitivos e oportunidades de resolver problemas (ex: quebra-cabeça de alimentação);Proporcionar oportunidade para brincadeiras e comportamento predatório;Treinamento (opção de explorar e experimentar novidades); |
Estimulação sensorial | Proteção contra sons altos e ruídos constantes (provenientes de pessoas, animais ou instalação);Oportunidade de ver ao redor da própria baia ou fora do prédio do abrigo;Proporcionar um ambiente que respeite a importância do olfato do gato. |
Fonte: adaptado de ELLIS et al. (2013); WEISS; MOHAN-GIBBONS; ZAWISTOWSKI, 2015.
A linha de pesquisa e atuação da psiquiatria veterinária na medicina do coletivo se torna cada vez mais necessária a fim de preservar a identidade comportamental do animal que sofre influência contundente da ancestralidade, experiências durante a gestação, socialização, habituação e associações iniciais. A partir do período de neuroplasticidade, de socialização, um estilo de vida e padrão comportamental pode ser estruturado. Esses padrões podem estar relacionados ao conforto emocional e dependência de recursos pela proximidade com o ser-humano e ou sua moradia.
Os gatos encontrados em colônias apresentam diferentes comportamentos e isso varia de acordo com o ambiente; a sua origem – se nasceu na rua ou se foi abandonado; tempo em que este animal vive naquele local; nível de socialização que pode ser classificado entre as categorias: dóceis/socializados e ferais.
As estratégias para o manejo das áreas em que os gatos vivem, principalmente, em locais de confinamento e alta densidade populacional, devem ser ajustadas e planejadas pela equipe, modificando aspectos relacionados com a estrutura, manejo livre de estresse, fluxograma para avaliação e monitoramento eficiente. Os gatos ferais deverão ser capturados sem a exposição desnecessária às atmosferas diferentes daqueles aos quais estão acostumados: a vida livre; e não deverão permanecer abrigados ou confinados. Os gatos comunitários (de rua e intermediários), que geralmente são mais tolerantes à aproximação dos humanos, porém não acostumados ao convívio doméstico, deverão ser protegidos e estimulados assim como os que são sociáveis e amorosos com os seres humanos, de forma combinada com suas percepções de um ambiente familiar.
Em geral, os gatos podem coexistir no mesmo lar, mas isso não significa que pertencem ao mesmo grupo social. Eles podem coabitar com sucesso se um novo membro for introduzido da maneira correta. O ambiente deve ser adaptado para acolher os indivíduos extras, com recursos adicionais fornecidos (comida, água e bandejas sanitárias), e ferramentas de enriquecimento ambiental, como oportunidades para fugir e se esconder, com o intuito de modificar as estruturas e práticas de manejo para reduzir o estresse e ampliar o nível de bem-estar, provendo estímulo físico e mental, encorajando os comportamentos normais da espécie e permitindo ao animal ter mais controle sobre o seu meio.
Os conhecimentos e as patologias comportamentais ainda constituem um território não desbravado para médicos-veterinários clínicos. Na maioria das vezes, não estão familiarizados com os transtornos psicológicos. A busca por tratamento costuma ser tardia, sua conduta em sua maioria se delimita a tratar apenas os danos clínicos ocasionados pela manifestação anormal e compulsiva. Os problemas de comportamento apresentam importância no bem-estar animal e na saúde pública. Problemas comportamentais são uma das principais razões de abandono e, consequentemente o destino destes animais podem ser os abrigos ou até mesmo eutanásia. Além disso, a agressividade é um fator de risco para transmissão de zoonoses.
Os etogramas para observação e investigação, estudos das expressões faciais e corporais dos gatos em diferentes circunstâncias e desafios são ferramentas fundamentais para a blindagem emocional. A partir dos avanços e do entendimento da necessidade das aplicações dessas estratégias relacionadas ao comportamento e saúde mental dos gatos, traços de personalidade deverão fazer parte das estratégias no acolhimento de gatos na atenção primária cada vez mais, assim, elevando a importância do estudo da mente complexa de um animal tão peculiar, elegante e absolutamente fascinante. É de extrema importância, locais com alta densidade animal possuir profissionais especialistas em psiquiatria animal, ou que compreendam a etologia e bem-estar animal.
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