Escrito por: Kaique Leite de Oliveira Santos
Revisado por: Lucas Galdioli e Rosangela Gebara
O manejo populacional de cães é constituído por um conjunto de estratégias desenvolvidas para prevenir a falta de controle e o abandono animal, bem como promover a guarda responsável, estruturados sob a ótica da promoção da saúde da comunidade, do bem-estar animal e do equilíbrio ambiental (MURRAY, 1992).
A falta de políticas públicas efetivas contribui para a realização de ações isoladas, sem o diagnóstico da situação e geralmente carentes de monitoramento e avaliação, conforme também evidenciado na literatura (PAULA, 2012). A partir do reconhecimento da senciência animal aliado ao aporte legal, há um aumento de relevância do caráter humanitário e a construção de um novo cenário quanto ao manejo dos animais de rua (ALMEIDA, 2017).
Na maioria dos municípios que possuem estratégias de manejo populacional de cães (MPC), o controle reprodutivo através da esterilização cirúrgica é a ação mais comum e implementada de forma única e não permanente, não contemplando outras ferramentas importantes de um programa de MPC.
Uma das estratégias complementares de manejo populacional de cães é a instalação de um Programa para Cães Comunitários. De acordo com a OIE (2008), o cão comunitário é o animal que vive na rua e que estabelece com a população local vínculos de afeto e dependência, apesar de não ter tutor definido e único.
Estes programas visa melhorar a saúde e o bem-estar dos animais que vivem na comunidade, beneficiando a comunidade e o ambiente como um todo. Dentre as varias ações que envolvem controle reprodutivo e controle sanitário, também encontramos ações que visam reduzir a migração, barreiras sanitárias e reprodutivas, e ainda podem servir como exemplos de educação em guarda responsável para a comunidade (MOLENTO, 2014).
O trabalho com cães comunitários permite-nos observar e estudar essa população, além de ajudar a elencar quais serão os desafios e quais são as ações necessárias para melhorar o MP da região, identificando quais são os animais semi-domiciliados, e ajudando na orientação dos responsáveis quando ao manejo de seus animais que tem acesso a rua e separando-os dos animais abandonados. Além disso, o Programa pode gerar novas perspectivas em que o bem-estar do cão passa a ser integrado às questões de saúde publica, além de questões éticas e políticas (ALMEIDA, 2017). Como exemplo, em um estudo realizado no Paraná, a maioria dos cães comunitários apresentou grau de bem-estar regular a alto, o que sugere que a qualidade de vida dos cães de rua nos municípios estudados é maior que normalmente pressuposto (RÜNCOS, 2014).
A ausência do Programa Cão Comunitário pode estar relacionada com o desconhecimento do programa (ALMEIDA, 2017). O desinteresse ou resistência à adesão ao Programa está vinculado com o fato de tal estratégia poder fomentar o abandono. Tal preocupação é legítima; entretanto, o animal comunitário, se acolhido pela população local, pode ser uma alternativa para o recolhimento do animal por envolver seu bem-estar e a população quanto à conscientização sobre o abandono (REECE; CHAWLA, 2006; MOUTINHO et al., 2015).
O judiciário brasileiro vem sendo acionado a se manifestar acerca dos direitos dos animais comunitários, já que estabelecem laços de dependência e manutenção com a comunidade em que vivem, tendo o direito de permanecer no local onde se encontram, a não ser que ofereçam riscos, a sua integridade física ou as pessoas. Desta forma o Poder Público tem o dever de manter a vigilância e o cuidado dos animais comunitários, prestando atendimento veterinário, realizando a esterilização e a identificação por meio de um cadastro renovável anualmente e trabalhando na efetiva divulgação do programa e na educação em guarda responsável (PRADO, 2022)
Como o comportamento humano tem grande influência na comunidade e possivelmente é a força mais poderosa por trás da dinâmica (GARCIA et al., 2012), a educação tem que ser um dos focos principais destes programas, visto que a desinformação promove um aumento no abandono de animais de estimação, gerando efeitos diretos na saúde pública devido ao aumento populacional associado aos processos de migração de animais em busca de recursos (RIBEIRO et al., 2019).
Atualmente, vários países já iniciaram medidas de resposta para ajudar animais que não possuem um responsável direto, como os animais abandonados e os comunitários (RIBEIRO et al., 2019). A falta de conhecimento acerca do tamanho da população e de cálculos que permitam entender as expectativas técnicas a partir de cada intervenção possível inviabiliza a escolha de estratégias efetivas(WHO, 1992).
Durante a pandemia COVID-19, surgiu uma nova preocupação acerca dos animais comunitários atendidos por programas estruturados com a ajuda de mantenedores. Muitos dos animais em situação de rua sofreram com o isolamento, e tiveram prejudicados seu acesso a comida, a água e a assistência veterinária, porque muitos mantenedores foram acometidos pela enfermidade. Essas situações podem resultar em impactos negativos no bem-estar animal e oferecendo riscos à saúde pública, pois animais sem cuidados e comida podem mudar seu comportamento, tendendo a ser mais agressivos em prol da sobrevivência, aumentando assim o número de mordidas e ataques. A criação de uma rede de coordenação e apoio aos animais em situação de rua pode ser uma ferramenta profilática e reativa fundamental para enfrentar situações adversas como pandemias, desastres naturais crises sociais, guerras, greves, dentre outras (RIBEIRO et al., 2019).
Segundo as recomendações das organizações internacionais de saúde pública e saúde animal, em caso de situações adversas, como pandemias, é recomendado aos municípios para atuarem através das seguintes ações (RIBEIRO et al., 2019):
- Comunicação nos canais oficiais de órgãos públicos, a fim de esclarecer dúvidas da população.
- Estabelecer uma rede de apoio às organizações de proteção animal local e aos protetores independentes que já realizam o trabalho de ajuda aos animais de seus respectivos bairros, para que possam dar continuidade aos seus trabalhos com segurança e organização; e que sejam protegidos com EPIs (Equipamentos de Proteção Individuais), e assistidos com rações e insumos para o atendimento aos animais carentes. Importante que a participação governamental local também ajude na informação e conscientização destes protetores em medidas de biossegurança e prevenção as zoonoses.
- Identificar, cadastrar e autorizar a circulação de mantenedores independentes ou membros de ONGs para que estas pessoas tenham permissão de continuarem com sua rotina de alimentação, nos locais habituados, mesmo que estes estejam fechados, mantendo todas as recomendações das autoridades sanitárias na cadeia de atividades. Isto se faz necessário para a manter a saúde pública de ambas as populações, pois os animais estão acostumados a serem alimentados por essas pessoas, que por sua vez já estão acostumados a identificar qualquer alteração na saúde e comportamentais dos mesmos.
- Aumentar a fiscalização em relação aos casos de abandonos e maus-tratos aos animais.
- Avaliar o comportamento, a dinâmica populacional dos animais que vivem nas ruas da cidade, monitorando o crescimento e movimentação destes, sejam eles errantes ou comunitários.
- Criar campanhas educativas em guarda responsável, contra a prática do abandono e a coibir qualquer tipo de maus-tratos a animais nas ruas, incluindo também informações de como as pessoas podem ajudar as ONGs locais, o abrigo local, como podem oferecer lares temporários aos animais.
- Estabelecer grupos multidisciplinares para monitoramento de zoonoses, seus efeitos na saúde pública, como também há aumento nos números de agravos (mordeduras caninas) e ao abandono, por áreas e características.
Para isso se recomenda que os municípios formem inicialmente um comitê independente e multidisciplinar para tratar estabelecer um planejamento de redução de riscos futuros, pensando em impactos a curto, médio e longo prazo (RIBEIRO et al., 2019).
Além das questões demográficas, o sofrimento animal deve ser sempre levado em conta, uma vez que os animais de rua estão sujeitos a fome, maus-tratos, falta de cuidado e de abrigo. Por outro lado, animais em condições inadequadas de saúde pode ser um risco para a transmissão de zoonoses (BIONDO; MORIKAWA, 2014), e serem submetidos a eutanásia seletiva para controle sanitário, a fim de não comprometer a qualidade de vida de outros animais da população. Vale ressaltar a necessidade de políticas públicas eficazes em alertar, educar e punir tutores negligentes por permitirem a presença de cães semi-domiciliados em via pública, constituindo risco de acidentes (ALMEIDA, 2017).
O controle apropriado da população canina é de responsabilidade do governo nos âmbitos local e federal; entretanto, as ONGs podem ter papel importante neste contexto, pois podem servir como elos entre o governo e a comunidade (ICAM, 2007; OIE, 2016). A participação social pode fazer com que a sociedade envolva os órgãos públicos para mudar a visão para com esses animais em situação de rua, incentivando a inserção de protocolos para o manejo populacional (ALMEIDA, 2017).
As estratégias propostas acima envolvem sempre um diagnostico que se inicia preferencialmente com um censo ou estimativa populacional; conhecimento da dinâmica populacional; fomento a participação social com envolvimento dos diferentes setores no planejamento das estratégias; ações educativas; registro e identificação dos animais; assistência veterinária; prevenção e controle de zoonoses; controle do comércio de animais; manejo etológico e destino adequado dos animais abandonados; legislação pertinente, dentre outras (OIE, 2016). Além disso, necessita-se o monitoramento constante da efetividade de tais estratégias, através do o uso de indicadores, que mostrem as melhorias relacionadas às interações humano-animal, aos serviços públicos e ao controle das zoonoses transmitidas por esses animais, e ainda, a implantação de cursos de capacitação específicos para os funcionários que trabalham com o manejo populacional (GARCIA et al., 2012).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, J.T. Adoção do programa cão comunitário como estratégia adicional para manejo populacional de cães. Pós-graduação em ciências veterinária da Universidade Federal do Paraná, 2017.
GARCIA, R. C. M. Estudo da dinâmica populacional canina e felina e avaliação de ações para o equilíbrio dessas populações em área da cidade de São Paulo, SP, Brasil. Tese (Doutorado). Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, Universidade de São Paulo, 265p, 2009.
GARCIA, R.C.M, CALDERÓN, N., FERREIRA, F. Consolidação de diretrizes internacionais de manejo de populações caninas em áreas urbanas e proposta de indicadores para seu gerenciamento. Revista Panamericana de Salud Publica, v. 32, n. 2, p. 140-144. 2012.
ICAM. International Companion Animal Management Coalition. Humane dog population management guidance, 2007.
MOLENTO, C. F. M. Public Health and Animal Welfare. In: APPLEBY, M.C., WEARY, D.M.; SANDØE, P. Dilemmas in Animal Welfare. Wallingford UK & Boston MA: CABI publishing, p. 102-123, 2014.
MOUTINHO, F. F. B., NASCIMENTO, E. R., PAIXÃO, R. L. Percepção da sociedade sobre a qualidade de vida e o controle populacional de cães não domiciliados. Revista Ciência Animal Brasileira, v. 16, n. 4, p. 574-588, 2015.
MURRAY, R.W. Unwanted pet and subsidized pet neuter schemes. Australian Veterinary Practitioner, v. 22, n. 1, p. 12-18. 1992.
OIE. World Organization for Animal Health. Report of the seventh meeting of theorie working group on animal welfare, 2008.
OIE. World Organization for Animal Health. Stray dog population control. In: Terrestrial Animal Health Code, 2016.
PAULA, S. A. Política Pública de esterilização cirúrgica de animais domésticos, como estratégia de saúde e de educação. 40 p. Monografia (Pós-Graduação em Gestão Pública Municipal). UTFP. 2012.
PRADO, C. Políticas municipais de direito animal: controle populacional e programa de educação para a guarda responsável de cães e gatos na cidade do Rio de Janeiro. Selo Dialética, ISBN: 9786525259246, p. 136, 2022.
REECE, J. F.; CHAWLA, S. K. Control of rabies in Jaipur, India, by the sterilization and vaccination of neighbourhood dogs. New York: The Veterinary Record, v. 159, p. 379-383. 2006.
RIBEIRO, R; GAMBOA, M; ALMEIDA, J.T; QUILODRÁN, F.E; FORTUZZI, F.M. Como atuar com as populações de cães e gatos domiciliadas e em situação de rua durante a emergência sanitária da COVID-19. Proteção Animal Mundial, 2019.
RÜNCOS, L. H. E. Bem-estar e comportamento de cães comunitários e percepção da comunidade. 106 p. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.
WHO. World Health Organization. Expert Committee on Rabies. Eighth report. WHO Technical Report Series, 824. Genebra, 1992.