Medicina Veterinária Indigenista e de Comunidades Tradicionais
Mais recentemente, a Medicina Veterinária indigenista e de Povos Tradicionais (caiçaras, ciganos, quilombolas, ribeirinhos, dentre outros), encontrou forças e se fez parte da Medicina Veterinária do Coletivo. Ao longo da história, os povos tradicionais brasileiros têm sido vítimas de repressão e racismo ambiental, criando uma dívida que afeta todos os cidadãos do nosso território. A exclusão desses povos e a falta de compreensão dos seus modos de vida, bem como dos impactos da colonização sobre eles, são problemas estruturais que ainda permeiam nosso pensamento e nos impedem de entender plenamente o contexto do outro. Desta forma, muitos impactos à saúde coletiva nas comunidades tradicionais são oriundos de históricos de intercorrências, práticas hegemônicas e a não consideração à garantia de um meio ambiente saudável. A atuação perante esse cenário demanda do entendimento do conceito em saúde única, o qual possui distintas concepções, principalmente com base nas práticas tradicionais que são pouco consideradas neste contexto, sendo essencial o reconhecimento desse histórico e das relações entre pessoas com o seu meio para a tomada de decisões adequadas. Isso levanta questões importantes: quem está realmente cuidando de forma integrada da saúde humana, animal e ambiental, além dos esforços valorosos dos povos em seus próprios territórios? E como as instituições de ensino superior e os conselhos de classe estão contribuindo para esses processos?
Apesar das adversidades, é possível constatar alguns avanços nas pesquisas realizadas em territórios indígenas, que abordam questões relevantes para a saúde integrada, com especial enfoque em doenças zoonóticas, mudanças climáticas e nas interações entre seres humanos e animais. Nessa jornada rumo a um pensamento coletivo, é fundamental dar protagonismo aos povos tradicionais, ao mesmo tempo em que a população não tradicional assume um papel de coadjuvante comprometido. O objetivo é construir uma nova história na perspectiva da saúde única, abrangendo o combate ao racismo ambiental, a insegurança alimentar e nutricional, a transmissão de doenças zoonóticas e negligenciadas, bem como garantir que os povos tradicionais não sejam mais invisíveis. Entender que esse trabalho é interdisciplinar e multidisciplinar é crucial, e sua efetivação só é possível com a participação ativa da sociedade como um todo. Assumir um compromisso coletivo, dando as mãos e investindo energia no apoio proativo a essa causa, é o caminho para a construção de um futuro mais justo e equitativo para todos, respeitando e valorizando a diversidade, as diferentes formas de vida e os direitos dos povos tradicionais brasileiros.
Um exemplo de projeto de atuação nesse contexto, com comunidades tradicionais, é do Barco Saúde Única, que atua no litoral do Paraná nos municípios de Guaraqueçaba, Antonina e Morretes, representando uma iniciativa voluntária e transformadora dentro do conceito da Saúde Única. O projeto desenvolve um programa de manejo populacional de cães e gatos em comunidades remotas levando cuidados veterinários às comunidades tradicionais. Além de atuar com ações clínicas em medicina veterinária preventiva e mutirões de castração, o projeto também abrange educação em saúde, promovendo a conscientização sobre doenças de origem zoonóticas e práticas saudáveis. Essa abordagem holística não apenas contribui para a melhoria da saúde física dos moradores e dos animais, mas também fortalece os laços e o bem-estar da comunidade.
A experiência do Projeto Barco Saúde Única demonstra a importância de adaptar os serviços de saúde às realidades locais e de superar desafios geográficos e infraestruturais. Ao proporcionar um acesso mais equitativo à saúde, o projeto ajuda a mitigar os desafios socioambientais e evidencia a importância de iniciativas voluntárias continuadas, centradas na comunidade. A abordagem do Barco Saúde Única busca preencher uma lacuna crucial no sistema de saúde, além de destacar a necessidade de soluções flexíveis e culturalmente sensíveis ao enfrentar questões de saúde em contextos complexos.
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